sábado, março 24, 2007

Cuidado para não ser muito exigente em suas relações amorosas ou com as amizades.
PARA O BEM OU PARA O MAL, O BRASIL PODE VIR A SER O PAÍS QUE INVENTARÁ O FUTURO

Do século XX, no futuro, se dirá que foi louco. Um século em que se usou ao máximo o poder do cérebro para manipular as coisas do mundo e não se usou o coração para fazer isso com bom sentimento. Um século onde a palavra inteligência perdeu o sentido pleno porque, com ela, o homem foi capaz de manipular a natureza nos limites da curiosidade científica, mas não soube usá-la para fazer um mundo melhor e mais belo para todos.

A inteligência do século XX foi burra. Fomos capazes de fabricar a bomba atômica, liberando a energia escondida dentro dos átomos, mas incapazes de evitar que duas delas fossem usadas. Naqueles dois momentos, negamos - sem qualquer julgamento ou piedade - o direito à vida a centenas de milhares de pessoas. O que se pode dizer da bomba atômica, como símbolo do século

XX, vale para o conjunto das técnicas usadas nesses cem anos loucos. Fomos capazes de tudo,menos de fazer o mundo decente. E isso teria sido possível.

Vivemos um tempo em que a inteligência humana conseguiu fazer robôs que substituem os trabalhadores. Mas, em vez de libertar o homem da necessidade do trabalho, os robôs provocam a miséria do desemprego. Inventamos a maravilha do au tomóvel, mas aumentamos o tempo perdido para ir de casa ao trabalho nas grandes distâncias e nos engarrafamentos. Fizemos armas inteligentes que acertam alvos sem necessidade de arriscar a vida de soldados e pilotos, mas não fizemos um trânsito inteligente, capaz de evitar o sacrifício da vida em engarrafamentos e acidentes.

Chegamos a um tempo em que a vida foi alongada até perto dos cem anos para os seres humanos com acesso às avançadas técnicas médicas. Porém, fomos incapazes de levar o mínino de higiene a uma parte considerável da humanidade, que continua vivendo tantos anos quanto no começo do século. Montamos a rede da internet no mundo inteiro e não construímos redes de esgotos nos bairros periféricos das grandes cidades. E aqueles que vivem mais,se dedicam a consumir mais, destruindo o equilíbrio ecológico. Criamos uma globalização que aproximou seres humanos, não importa a que distância eles estejam. Ao mesmo tempo, ela os afastou, mesmo quando vivem na casa ao lado. Ainda mais se vivem em uma tenda ou debaixo da marquise do prédio da esquina...Fizemos um mundo onde as pessoas sentem-se em casa mesmo do outro lado do planeta, mas têm medo de abrir a porta, de atravessar a rua ou de parar em um sinal de trânsito.

Sem dúvida, o século XX foi insano. O mundo, buscando a eficiência técnica, matou a justiça. Concentrado na ciência, matou a ética. Do século xx se dirá que teve os maiores avanços científicos e quase nenhum avanço ético. Dele, os grandes nomes serão de cientistas, governantes em guerra e empresários...Raros serão os artistas, os filósofos e os humanistas. Mas diante de nós está um novo século que pode continuar a loucura ou reorientar os destinos da humanidade. A diferença será se o século XXI ficará como novo século da técnica ou o século da ética.

Nada indica que a mudança de rumo esteja à vista. Os discursos de final de ano continuaram concentrados na necessidade de multiplicar a produção e não de melhorar a qualidade de vida, na necessidade de aumentar a riqueza e não de diminuir a pobreza. Continua a neurótica preocupação com os meios como se fossem fins. Não se questiona aonde desejamos chegar com o projeto civilizatório. Se escolher a continuidade da técnica desprezando a ética, a humanidade caminhará para a ruptura da espécie em duas partes diferenciadas, até o ponto em que, no novo século ou no seguinte, desaparecerá a semelhança entre elas. Esse é o caminho da mordernidade técnica: a continuação da loucura que cura um desconforto no próprio braço, amputando-o no lugar de descobrir as vantagens de mantê-lo.

O século XXI pode ser o momento de coroação do projeto civilizatório, se seguir-mos o caminho da busca da mordernidade ética. O brasil é o local mais provável para os primeiros sintomas dessa opção aparecerem. Temos aqui, mais do que em qualquer outro país do mundo, os sintomas da loucura de uma técnica sem sentimento a serviço de uma privilegiada e enlouquecida minoria, pelos desejos de consumo. Por isso, temos mais forte a necessidade de corrigir o rumo que seguimos, para formular uma nova direção. O século XXI começa, por isso e sobretudo, no Brasil. Talvez, no futuro, do século XXI se possa dizer que foi no Brasil que se inventou o futuro, para o bem ou para o mal. Vamos olhar os próximos dias, meses e anos e ver se a elite brasileira entra no novo século procurando um novo rumo social, guiado pela ética, ou se vai insistir em ser exemplo do mal construindo uma sociedade com apartação.

(Cristóvam Buarque)